Um camafeu de Lágrimas.
Fábio Teixeira


Sento no sofá de capa laranja. Sem perspectivas, através de meia pálpebra observo a velha tinta branco gelo das paredes da sala. Penso numa cor para renovar um pouco os ares. No ambiente escuto o rádio do vizinho, que toca o jornalismo esportivo. Ele faz isso todos os dias a partir de sete horas e cinco minutos, exatamente. Conjeturo se aqueles malditos decibéis estão dentro dos padrões da lei de convivência dos condomínios, mas sei que pensar nisso é apenas uma forma de distrair a cabeça. Eu sei disso. Azul era nossa cor predileta. Vestidos, blusas, lugares, times, luminária, bares. Encontrávamos azul no nosso cotidiano. Muito longe de ser fria, sempre foi a cor da nossa paixão. Velas, capas de filmes e até mesmo quando fechávamos os olhos durante um longo beijo, cintilava por detrás dos lábios um tom azulado claro que espargia pelo córtex occipital e fazia tudo ficar mais leve. Não tenho certeza se as cores são reflexos luminosos dos sentimentos, mas subitamente percebo que pareço uma grande mancha azul num mar alaranjado. Isso me dá vontade de rir com a boca mole e os olhos parados na realidade branca suja das velhas paredes. Não acho lugar confortável para minhas pernas. Este é um sofá do tipo comprado em lojas populares, na promoção que vem com um sofá de dois lugares e um de três. Não sei porque fazem esta propaganda enganosa, já que definitivamente não cabem três pessoas aqui. Muito menos pernas azuis esticadas. Ela nunca se importou com o conforto. Tinha o corpo magro e esguio e parecia caber em qualquer lugar. Escadas, troncos, pisos, saco de dormir. Banquinhos manquitolas e pedaço de papelão na grama, sofás moles e duros. Enquanto havia azul em nossas bocas, não importava se as pernas podiam se esticar ou não. Aqueles lugares pareciam do tamanho ideal, ergonomicamente projetados para duas pessoas ficarem nas mais diversas e confortavelmente estranhas posições. Mas hoje, minhas pernas não cabem num lugar feito para três pessoas. Escuto um silêncio incômodo. Os malditos decibéis do jornalismo esportivo são interrompidos sem motivo. Acho que nunca vou entender como uma coisa que me incomoda pode fazer tanta falta. Nunca tinha me imaginado desejando o comentário futebolístico. Esses sons atravessados, carros, buzinas, vizinhos chatos, esses barulhos infernais cumprem o papel de preencher o espaço do pensamento, que vai definitivamente se ocupar com o vazio quando eles acabam. Tudo que fazíamos tinha musica. Musica para fazer bolo de chocolate com damasco, música para tomar banho, pra roer as unhas. Música para fazer amor, que quase sempre era a mesma. Como um mantra sexual, ao tocar fazia nossos corpos se movimentarem naqueles espaços, palco ergonômico de um dueto. Agora mal me movimento. Sento no sofá de capa laranja e através de meia pálpebra, sem perspectivas, olho para a parede branco gelo suja. Escuto o silêncio. Repouso desconfortavelmente as pernas. Sem piscar, algumas lágrimas escorrem no meu rosto. Eu só a vi chorar uma vez. Foi a última vez que a vi. Foi a única vez que vi aquele corpo magro e esguio desconfortável. Trêmulos, não cabíamos em nenhum sofá, não cabíamos em nenhum lugar, não cabíamos um na vida do outro. O que me incomoda me faz falta. E o que não incomoda faz mais falta ainda. Estou sozinho. Só tenho agora estas lágrimas que molham a mancha azul, abraçam o pescoço e se agrupam de forma oval como um camafeu. Estas lágrimas são a última imagem que guardo dela sobre meu peito.

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