O inferno tem outro nome: repetição.

 

O inferno tem outro nome: repetição.
(Fabio Teixeira)



O inferno tem outro nome: repetição


Olho diretamente para a ambulância parada ao lado de uma rampa de acesso para o segundo andar de um prédio decadente, numa rua escura meio que verde-acinzentada. Há duas portas de acesso, uma abaixo da rampa e outra no segundo andar, e aparentemente são as únicas fontes luminosas do ambiente. As janelas de vidro estão todas fechadas e as luzes, apagadas. Espreito do canto da esquina adjacente, esgueirando-me temeroso a um quarteirão de distância.

Os sonhos não têm início. Já pensei nisso várias vezes, porque não há lembranças do que aconteceu antes de as lembranças começarem. Quando percebo, já estou no meio de algum lugar e de uma situação. Vejo tudo aquilo com uma sensação de insegurança, num lugar desconhecido e inesperado.

A porta do fundo da ambulância abre-se e sob a penumbra vejo vultos que se movimentam rapidamente e se dirigem para o segundo andar. Num ímpeto corro nessa direção, mas não tenho coragem de subir. Percebo que não há sons em mim, não há sons no meu corpo. Não consigo emitir sons neste sonho, nem voz, nem gritos, nem batimentos cardíacos. Sinto-me ofegante pela corrida, mas não há o som da respiração. Nada. Todos os sons são externos ao meu corpo.

Subo a rampa para a segunda porta. Dentro, tudo parece extremamente maior do que do lado de fora. Não há luzes acesas; mesmo assim é possível enxergar: paredes escuras cheias de mofo, escada, portas. Não vejo ninguém, contudo; apenas ouço murmúrios que seriam inaudíveis se não prestasse atenção. Ando pelo ambiente solitário e subo a escada. Não tenho ideia de onde ir, mas sigo sempre em direção aos andares superiores, onde o cenário se repete. Cada andar tem o mesmo cenário do de baixo. Paredes, penumbra, escada, murmúrios e mofo. Subo então correndo, exaustivamente, escada após escada, sete andares, sete escadas, até perceber o que parece ser o fim. Um andar com o teto rebaixado muito além do normal, um espaço claustrofóbico e tenso.

Ando pelo corredor repleto de portas abertas. Ao passar pela primeira, vejo ao fundo uma mulher velha, nua. Sinto falta dos sons. Meu coração bate forte na garganta e tenho a respiração arfante, seca, contida e inaudível. Todo este vazio sonoro piora a sensação do que vejo. Insisto em olhar, não consigo deixar de olhar. A visão repugnante me força a virar o rosto e observar de soslaio. É uma senhora magra, escorada ao fundo do quarto sobre uma cama de lençóis encardidos. Os seios magros estão esparramados por sobre a barriga enrugada, e ela fuma tristemente um cigarro. Seus olhos são fundos e escuros, e ela me observa duramente, enquanto fala alguma coisa, com as pernas abertas e um convite para a consumação do ato sexual com a velha prostituta. Eu nego com a cabeça, mas seus olhos continuam duros a me fixar. Estou consternado, desejoso de ir embora, fugir dali. No entanto, algo muito mais intenso, quase como uma curiosidade mórbida, impulsiona-me a seguir olhando as outras portas.

Entro no quarto ao lado e sou surpreendido pela chegada de vários enfermeiros empurrando uma maca porta adentro. Escondo-me num cantinho escuro e observo a cena. Um parto. A mulher está deitada com um lençol verde sujo de sangue que cobre apenas seus genitais, sua cabeça está virada para o lado, sua boca aberta e os olhos mostram apenas a esclera branca. Chama-me a atenção que a maquiagem dos olhos é bem forte, com uma sombra borrada e preta. Ela está pálida e desacordada. Três enfermeiros estão na sala, duas mulheres e um homem. Todos com semblante escuro e sério, os olhos secos e sem brilho.

Colocam a maca com a cabeceira virada para a porta e abrem as pernas da mulher. Alvoroçado, o homem puxa com força, mas nada acontece. Pega um fórceps e antes de executar a ação olha para as duas enfermeiras, que abaixam os olhos e confirmam com a cabeça. Ele puxa violentamente emitindo um grito aspirado de quem se exauriu no esforço. A mãe continua imóvel, apenas com a boca aberta babando. Jorra sangue pelo chão da sala e chega a molhar meus pés. Vejo que estou descalço e rio nervosamente por não ter percebido antes. O homem retira a criança, entrega para a enfermeira ao lado e se retira da sala levando a mãe inerte.

Não consigo parar de olhar para a infante. Tem o corpo grande e barrigudo, e três cabeças. Uma delas pende para o meu lado, totalmente cinza, pequena, murcha e morta. A do meio é totalmente disforme, com o crânio bem grande como quem tem hidrocefalia, e os olhos arregalados voltados para o teto, sem piscar. Parece não ter pálpebras. A terceira é uma cabeça normal, e é a única cabeça de criança que chora, de forma aguda e irritante. Aquele sangue molhando meus pés me incomoda, o choro me incomoda, mas nada é tão insuportável quanto perceber que nenhuma daquelas pessoas nota a minha presença. Minha coluna se gela e meu coração se petrifica. A cabeça morta da criança abre os olhos e me fita. Ela escuta meus pensamentos. Abre a boca gosmenta e pronuncia o seu veredicto três vezes: “Você veio aqui para nos ajudar e não fez nada! Você veio aqui para nos ajudar e não fez nada! Você veio aqui para nos ajudar e não fez nada!” As palavras me doem no peito. Ainda chocado, vejo a enfermeira segurar a cabeça murcha com as mãos e esmagá-la até explodir como se faz a um tomate podre.

Aturdido, corro escorregando no chão melado de vermelho escuro para o próximo quarto, onde dois homens me esperam vestidos de roupa de faxineiro com bonés amarelos. Não consigo ver os rostos ocultos pelas abas. Percebo o perigo. Calafrios. Naquele silêncio fatídico tenho medo de pensar alto demais. Pior ainda, que eles possam escutar meus pensamentos também. Sinto aflição e desespero por não haver sons possíveis para exprimir a minha angústia. De maneira brusca e feroz, os homens partem em minha direção e instintivamente dou as costas e fujo. Aqueles murmúrios se tornam mais altos, gritos fúnebres, gritos horripilantes, e os escuto diretamente dentro da minha cabeça. As ondas sonoras dos gritos parecem tapas que me jogam de um lado para outro enquanto grito silenciosamente descendo as escadas. Não quero olhar para trás.

Os andares, antes vazios, agora estão povoados, lotados de pessoas vivas, mortas, nem sei. Corpos jogados pelo chão, inertes ou em convulsão, cada um tão absorto no próprio sofrimento que não faz diferença quando piso em algum deles. Sinto os faxineiros cada vez mais perto e me desespero descendo e tropeçando escada abaixo. Os cenários se repetem, mofo e paredes escuras, os corredores lotados de pessoas e gritos. Demora muito até que chega a porta de entrada, trancada. Bato, bato, tento empurrá-la e ela nem se move. Encosto a testa na porta e fecho os olhos.

Silêncio. Sei que é o mesmo silêncio petrificante do quarto onde estava com os homens faxineiros e tenho certeza de que eles estão parados atrás de mim. Bem ali, atrás de mim. Quase que respirando na minha nuca. Não quero olhar, não quero olhar, não quero olhar. Não tenho alternativa. Viro-me gritando mudamente numa última tentativa de afastá-los. Ainda com a boca escancarada e o corpo contraído de medo, abro os olhos e vejo meu próprio quarto, já acordado.

Desperto com as mãos esticadas para cima e os pés esticados para baixo, como quem está amarrado numa mesa de tortura medieval. Tornozelos e punhos cruzados, amarrados por cordas imaginárias aos pés e à cabeceira da cama. Não consigo me mexer por um tempo, e agora escuto meu coração bater acelerado e a respiração ofegante. Cama molhada de suor, lentamente consigo abaixar os braços e dobrar as pernas, enquanto sento na beira da cama. Escuto-me a respirar por bastante tempo.

Mais uma noite, penso. Mais uma noite.

É um sonho que se repete. Durante toda a minha vida eu acordei nessa posição. Braços para cima e pernas para baixo. Amarrados por cordas invisíveis. Escutando minha respiração.

Não me recordo quando começaram estes sonhos. Acho que os sonhos não têm início. Já pensei nisso várias vezes, porque não há lembranças do que aconteceu antes de as lembranças começarem.

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