Cuspindo beijos.
Cuspindo beijos.
(Fabio Teixeira)
Naquele
dia, Jorginho estava empolgado. Aparentemente, era um dia comum, uma
data qualquer do verão em que ele completara 10 anos de idade. Todos os
dias ele era o primeiro a entrar no ônibus escolar, precisamente as
05:30h da manhã. Aproximadamente as 06:00h, já no outro bairro em
direção à escola, ela entrou. Cristiane. Ele não conseguiu tirar os
olhos dela. Jorginho sentou bem no fundo do ônibus, fato que não era de
seu costume. Estrategicamente deixou a última fileira, na ultima
cadeira, do lado do motorista, no lugar mais escondido, bolsas e
agasalhos para que ninguém se atrevesse a sentar ali. Ela veio
caminhando pelo corredor e Jorginho apressadamente derrubou todas as
coisas no chão e socou a mochila por debaixo da cadeira. Feito. O único
banco vazio no fundo do ônibus era aquele ao seu lado. Ela sorriu, pediu
licença entre os dentes e se assentou. Cristiane estava na 8a série e
Jorginho ainda na 5a. Ela era bem mais alta do que ele, o que não era
raro, pois o apelido Jorginho fazia jus à sua altura. Tímido, nunca
falara uma palavra sequer com ela, apenas olhares furtivos, sorrisos
delicados e bochechas vermelhas. Ela puxou assunto - Nunca nos falamos
antes, não é? Jorginho deixou escapar o ar pela boca entreaberta, pois
sabia exatamente a frase decorada mil vezes nas últimas semanas - Você é
linda! Mas é claro que ele não falou nada disso, apenas balançou a
cabeça sem graça e negativamente. Para seu espanto ela continuou a
sorrir e tocou levemente a sua mão por causa do balanço do ônibus ao
passar num buraco – Eu sempre vejo você jogando futebol com os meninos.
Jorginho quase caiu da cadeira. Só não caiu porque estava tão inchado
que parecia mais leve do que o ar. É sempre estranho o comportamento dos
meninos antes do primeiro beijo. Qualquer assunto serve de desculpa
para aproximar os lábios um do outro. Então o ônibus deu um breque,
destes quando passa um cachorro distraído pela rua e o motorista tem de
frear bruscamente. Foram arremessados pra frente segurando um no outro e
no rebote já estavam se beijando. Perfeição. Um beijo de altura e
tamanho variado, regado ao som ensurdecedor de todos moleques: Beija!
Beija! Beija!. Como aqueles quilômetros até a escola passaram depressa.
Jorginho não viu mais curvas, nem quebra mola, nem gritos, nem
cachorros. Só havia o som de língua e dentes da 8a série, de bochechas
vermelhas e batom de framboesa. Com muito custo manteve os olhos
fechados, porque tudo que queria era continuar olhando e dizer por entre
as pupilas: você é linda! Ao descer do ônibus, sua boca ainda estava
anestesiada. Ele não conseguia fechá-la com tanta saliva doce e gosto de
framboesa quente. Este foi o seu sacrilégio. Aliviar aquele excesso
vermelho e adocicado num escarro antológico sobre a calçada bem em
frente ao portão da escola. Um ato inocente, porco e impensado. Os
gritos então fizeram-se ouvir. Ele cuspiu! Ele cuspiu! Ele cuspiu!
Jorginho nunca mais viu Cristiane entrar no ônibus. Sem desculpas e sem
perdão, como é fugaz o amor das crianças. Jorginho já é adulto e
continua lembrar-se do beijo toda vez que come gelatina de framboesa.
Mas agora, ele aprendeu a cuspir escondido dos outros.
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