Pequeno manual nada prático para matar o amor.
Ele acordou lânguido no meio de uma rua
qualquer no centro da cidade. Aquele despertar lento de quem passou por um sono
duradouro. Achou estranho sentir tanto asfalto incrustado em seu rosto e riu-se
por um segundo - Onde estou afinal? Não se dava conta daquele lugar. A cidade
era suja, cinzenta e ele não se lembrava de ter visto tudo aquilo antes, embora
soubesse do que se tratava. Ergueu-se e lançou um olhar ao redor. Pernas,
prédios, rodas, lixo. Tudo lhe parecia tão alto e incompreensível que não teve
a mínima reação por um tempo. Andou um pouco, sem direção. As pernas lhe
trombavam, chutavam, um emaranhado bípede lhe impedia a passagem. Uma criança
passou correndo, pisou numa poça d´água suja de esgoto que salpicou por todos
os lados e ele gritou. Ei!!! Mas ninguém o ouviu. Colocando as mãos sobre o
rosto notou estupefato não ter boca, nem nariz, nem ouvidos, nem mesmo olhos,
enquanto apalpava-se furiosamente com mãos imaginárias. Um horror ácido lhe fez
sair correndo, gritando gritos sem nenhum sentido lógico. Caiu ao chão exausto
em frente a uma vitrine de roupas. O vidro espelhado podia lhe dar uma pequena
esperança de lucidez, uma resposta. Fincou os pés invisíveis no chão, virou-se
para o reflexo e observou-se atentamente. Até esse momento ele não tinha parado
para pensar que havia se esquecido de quem era, de sua verdadeira identidade.
As coisas, os fatos imediatos inexplicáveis o afastavam da sua parca noção de
eu. Ficou ali parado durante dias, semanas talvez, apenas lançando um olhar
fixo para sua própria imagem. As pernas altas, o céu, tudo mudava na imagem
refletida, enquanto ele, permanecia. Ele não tinha rosto, mas sentia
transfigurar-se em raiva, angústia, medo, sofrimento. Embora isento dos
orifícios do sentido, tudo lhe penetrava com intensidade assustadora. Quanto
mais ficava imóvel mais o mundo lhe tomava. Não havia mais dúvida. Ele já sabia
que era um coração arrancado do peito. Sem corpo, sem nada, apenas um coração.
Então ele teve a primeira constatação
que marcaria seu destino: A morte não existe para o coração. Claro, ele estava
vivo, não adiantou ser removido do peito de alguém, alguma coisa o mantinha
vivo, ali, batendo. Batendo? Um frio percorreu suas fibras quando percebeu que
não pulsava como um coração. Era um músculo cardíaco imóvel, sem movimentos,
sem barulhos. Havia apenas um silêncio, um esquecimento. Apertou as mãos contra
a própria carne, com um movimento tão intenso, que se tivesse boca ela rasgaria
de tanto gritar. Esforçou-se em lembrar quem era, o que era, pra que era. De
repente apareceu um som miocardíaco. Apertou cada vez mais as próprias carnes,
num espasmo louco e mais uma batida. Uma imagem. No princípio não fazia idéia
do que significava, mas continuou apertando-se, soltando-se, apertando-se, soltando-se, num ritmo frenético de um
coração desesperado. E a cada batida uma imagem surgia com aquele som. Uma
casa, um dia, uma roupa, uma pessoa, essa pessoa, a pessoa. De repente todos os
seus batidos eram por ela.
Surge a segunda constatação: Ele foi
arrancado do peito de alguém que amava. Mas isso não deu certo, porque dentro
dele estava a memória dela e o mundo que antes era cinza e sujo começou a ficar
belo e colorido. As batidas se tornaram cada vez mais fortes e mais fortes, que
as pernas altas se aglomeraram ao seu redor, formando uma pequena multidão
enraivecida por causa daquele som. Ninguém imagina a força de um coração fora
do peito. Aqueles tambores faziam o chão tremer, as casas, os vidros e todos
gritavam: “cale-se, não queremos, não agüentamos escuta-lo assim, tão alto”. Do
outro lado da rua ele a viu. A mesma mulher de sua memória. Então subitamente
parou de bater. Correu cambaleante naquela direção enquanto ela olhava com o
olhar pálido segurando algo em seu próprio peito. Ao se aproximar percebeu que
por baixo daquelas mãos delicadas havia uma enorme porta de metal, fechada com
sete cadeados gigantescos. Ele bateu, bateu, bateu, até começar a sangrar, mas
totalmente em vão.
Aquela porta era inacessível e ele teve
sua terceira constatação: Um coração foi feito para morar no peito do outro.
Não havia nenhum sentido de continuar vivo se não fosse ali dentro. Olhou para
cima, e ela olhava para o nada. Todo aquele esforço de morar ali, junto com
ela, nada valeu.
A quarta constatação foi a pior de
todas: A indiferença dói. Dói na carne, dói pra valer. E não é aquela dor que
você grita e pula não. É uma dor tão insuportavelmente paralisante, que toda a
sua reação passa a ser a própria dor. Nesse momento o coração quis a morte. Mas
isso ia de encontro à sua primeira constatação. Ele retornou para a cidade
cinzenta, correu até a vitrine onde havia se visto pela primeira vez e
mergulhou. Mergulhou na própria imagem refletida, estilhaçando o vidro e
cortando em dezenas de partes de sua própria carne. Não havia mais sangue, mas
ele sentia que de suas feridas dilaceradas vazava uma espécie de vômito
intangível, feito de desejos, lembranças, mágoas e frustrações. Estilhaçado,
vagando pelas ruas com suas cicatrizes expostas, mas ainda vivo.
Todos o olhavam com muita naturalidade
enquanto passavam por ele e veio a quinta constatação: Ninguém enxerga as
cicatrizes do coração. Ninguém veio me ajudar, acudir ou costurar nenhuma
delas, mas sabia que era porque ninguém as enxergava. Foi quando, sentado à
beira do bueiro, alguém o segurou fortemente. Ele podia sentir uma presença
reconfortante e familiar, como se conhecesse aquelas mãos. A ultima coisa que
ouviu foi: “sabia que não havia morrido”.
Assim foi encerrado novamente dentro do peito de seu antigo dono. Voltou
a bater, junto daquele corpo, mas desta vez o som era bem mais baixinho,
só escutado por ele mesmo.
A sexta constatação: Talvez a morte
exista. Talvez a morte seja o recomeço. Por isso ninguém entende a morte, por
isso é tão duro seguir em frente após amar alguém.
Aquele coração, queria mesmo é morar dentro do peito de outra pessoa.
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