A Carta de Despedida




Enfim, Peter sentou-se em frente ao mar. Aquele fim de tarde estava especialmente delicado, com o sol empurrando as nuvens para poder se encaixar no horizonte. Nada era mais propício para escrever uma carta de despedida. Estava determinado. Colocou a mão cerrada sobre os lábios, tomou coragem e sacou o lápis velho da bolsa de couro e seu caderno de anotações. Hesitou um pouco enquanto olhava para suas mão com aqueles objetos de execução, tal como faria um carrasco, se houvesse um com sentimentos.
Procurou uma página em branco no caderno surrado e arriscou um título: “Minha querida”; mas logo percebeu que não fazia sentido algum começar uma carta assim. Riscou tudo e colocou logo  abaixo. “Carta de despedida...”.
Aquelas reticências involuntariamente pontuadas puxaram um suspiro profundo e dolorido. Pensou em fechar o caderno e voltar pra casa, mas o peso do sol poente impedia seus ombros de erguerem-se.
Peter sentia naquela hora dores no corpo e coceiras na cabeça e na barba mal feita. Sentiu-se velho. Deu três socos motivacionais na coxa, crispou os lábios e escreveu:

Abre aspas

Posso parecer maluco ao escrever esta carta porque após este tempo todo descobri que você, de quem me despeço, nunca existiu. Como pode alguém em sã consciência despedir-se de algo inexistente? Mas é isso que farei agora.
Eu carrego comigo muitas memórias que, embora sejam admiravelmente belas para mim, tornaram-se um fardo devido a sua presença junto a elas. Lembro dos olhares doces e do riso fácil quando eu dizia qualquer bobagem, tudo tinha graça e era bom, leve e divertido. Me despeço de você hoje, porque tenho sentido dor para mostrar os dentes num sorriso.
Lembro dos beijos tímidos que dava, como quem beija uma pétala de rosa que pode esmaecer ao toque bruto. Sempre fui romântico, até exageradamente, assumo. Havia certa lentidão no meu toque, para poder passar mais tempo, afrouxar os segundos que eu tinha contato com o corpo dela. Lembro-me bem, que desde o início nos encontrávamos praticamente todos os dias, até o dia fatídico que eu imaginei que você existia. Não me sai da cabeça a sensação de saudade que sentia toda vez que ela ia embora, já pensando na alegria do próximo encontro. Eu sorria quando apitava uma mensagem, mesmo sem saber se era dela. E os abraços, como isso era bom. Abraça-la por muitos minutos sincronizando as respirações. Fizemos várias coisas juntos, ela aprendendo sobre meu mundo e eu toscamente esforçando-me para aprender o dela. Há muitos anos eu não sentia o peito leve, e só de pensar nela as dificuldades tornavam-se risíveis.
Sim, eu estava apaixonado. Mas não esta paixão vulgar de um homem que quer levar a mulher para a cama. Era uma paixão no nível do coração, sexual e espiritual. Como uma colisão de coincidências que fui capaz de perceber nas entrelinhas dos fatos.
Essas são algumas memórias que relato nesta carta e afirmo, são tão reais e distantes, tão inalcançáveis e vivas como este sol vermelho incompleto à minha frente.
Mas venho despedir-me de você que não existiu. Venho despedir-me de você, amor.
Acho desconcertante a idéia de que todas estas coisas aconteceram e você não. É como se fosse tudo mentira. Pode ser que eu desejasse tanto que tu existisse que idealizei, imaginei, pirei, tive um delírio. Iludi-me.
Despeço-me de ti, amor inexistente. Não te quero mais junto às minhas memórias.
Acho que o que senti era a reverberação de meu próprio amor, que este sim, ah sim. Este existiu e acho que era tão grande que parecia dois. O amor inexistente que vinha dela parece-me agora falso, forjado de forma contraditória numa mentira inocente.

Eu sigo. Você fica aqui, nesse mar. Deixe minhas memórias em paz.

Fecha aspas.

Peter tinha os olhos secos e duros, não chorou enquanto escrevia. Já estava escuro quando ele se esforçou para rever as letras quase apagadas. Levantou-se e andou um pouco pelas ruas sem direção específica, tal como um bêbado faria, sabendo-se vencido pelo tempo. Passou em sua cabeça mais uma memória de palavras escritas em algum lugar “você perdeu”. Lembrou nessa hora de quem era o destinatário da carta. Tomado por certa fúria, rasgou, picou, dilacerou o papel e foi engolindo pedaço por pedaço, tapando o nariz para não sentir o gosto ou o cheiro, como quem toma um remédio amargo para curar-se.
O real destinatário da carta estava dentro dele.
Andando pelas ruas, ria-se sozinho dos arrotos que dava, sentindo-se um pouco mais jovem com a brincadeira porca que fazia. Pensou que talvez pudesse voar novamente algum dia.



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