Navalha na Carne
Navalha na Carne
Autor: Plínio Marcos. Direção: Guilherme Colina. Elenco:
Alex Valle, Clébia Vargas, Fernanda Hallais e Guilherme Colina. Coreografia e Preparação Corporal: Douglas Gonzales.
Grupo Confesso - http://grupoconfesso.wordpress.com/
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Algumas observações após assistir o espetáculo.
A bailarina e sua prisão
invisível.
Entravamos para o show de Neusa
Sueli, que começou atrasado, na parede lateral do bar enquanto o caminhão de
cerveja era descarregado. Mal percebíamos, um pouco angustiados que a ação
teatral já começava, bem próxima, ao nosso lado. Personagens e pessoas se
misturavam numa ante-sala apertada, enquanto a atriz que chegava, rezava ao seu
pequeno santuário. Um ato de fé descabido, já que o futuro perdido, não absolve
os pecados.
Ler a Divina Comédia antes de
escrever trouxe um pouco de rima para minhas palavras. Mas até que é
conveniente, porque para escrever sobre Navalha na Carne queria voltar um pouco
minha experiência para este mundo poético que amo.
A peça é de uma beleza totalmente
crua. Tanto na linguagem textual como no corpo. Não houve muito lugar para
metáforas ou elucubrações metafísicas, filosóficas. Nada muito para além. Ao
contrário, o que se disse no palco falou da mais imediata e concreta ação
física e emoção do personagem. Achei isso maravilhoso, porque senti que aquelas
pessoas ali encenadas eram de verdade, não tão distantes de um fato que eu
poderia estar observando numa casa de tolerância ou na esquina da minha casa.
A peça traz diversos elementos que poderiam ser abordados.
Representações e papéis sociais da mulher, relações afetuosas, sexualidade,
abuso, prostituição, desejo, conflitos. Mas um assunto em especial me chamou
muito a atenção. Minha pergunta fundamental é: Porque aquelas pessoas (não
usarei a palavra personagens), simplesmente não iam embora? Tinham uma vida
miserável, relações conflituosas, tristeza, agressões. E continuavam ali, um ao
lado do outro.
O desamparo de uma existência sem sentido faz com que se
esgotem as possibilidades. As possibilidades sempre existem, mas quando a
experiência de liberdade é tolhida a pessoa não é capaz de perceber outras
saídas. Então ocorre o que eu chamaria do verdadeiro inferno, a repetição. O
inferno não é feito de fogo, muito ao contrário, o inferno é feito de gelo. O
congelamento da existência naquela situação fatídica, destruidora, da qual a
vida não vai se libertar.
Neusa já era uma “puta velha” e o que aconteceu nas cenas,
não foram novidades. Sua vida toda foi exatamente do mesmo jeito. Com muita
verdade e brilhantismo, os atores foram capazes de repetir cenicamente o
inferno daquela prostituta.
Embora eu pense que cada uma dessas pessoas também estava
vivenciando o seu inferno próprio, Neusa me trouxe mais claramente a situação
do desamparo e desespero existencial. A única saída que enxergou foi
submeter-se à exploração em troca de migalhas de atenção falsamente afetuosa.
Mas o que importa? É melhor ganhar as migalhas lambidas da sola do pé de um
cafetão, do que assumir o risco de estar sozinha no mundo, sozinha com suas
próprias possibilidades e incertezas. Sozinha.
Aquela bailarina da caixinha de música é a Neuza. Uma
bailarina feita de plástico, imóvel, rígida, congelada no seu inferno. Ela não
dança. Ela gira e gira, somente quando alguém lhe dá corda. Tem seus pés feitos
de imã, presa ao magnetismo invisível que o medo da solidão lhe impõe. Só lhe
resta esperar a música acabar e morrer.
A peça é um inferno para o qual vale a pena retornar.
Enquanto parte do público que assiste, claro.
Fabio Teixeira
Fabiozen.blogspot.com
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