SALOMÉ


Salomé

Regina Perocini interpreta Salomé através de nuances do Bailado Árabe e Flamenco.

Inspirado na obra de Eugenio de Castro.
Músicos: Marco Herrera e Walquitor Wahab.
Local: Soleá Tablao Flamenco

-----------------------------//-----------------------

"Radioso véu, mais leve que um perfume,
Cinge-a, deixando ver sua nudez morena,
Dos seus dedos flameja o precioso lume
E em cada mão traz uma pálida açucena.
E a infanta avança. ao som dos burcelins...
Como sonâmbula perdida
Em encantos, místicos jardins,
Dir-se-ia que dança desmaiando
Ao perfume das flores que estão em roda...
Dir-se-ia que dança e está sonhando...
Dir-se-ia que a estão beijando toda..."
(Eugênio de Castro)

Com muita alegria fui ao Soleá, assistir ao espetáculo Salomé. É um espaço de dança digno de uma apresentação como esta. Recomendo a todos.

Historicamente Salomé é descrita como uma linda jovem que tinha os cabelos longos, negros e sedosos, olhos de pantera e corpo perfeito como uma Vênus. Filha de Herodias e sobrinha de Herodes Antipas. Fora o parentesco Bíblico, arrisco dizer que era quase uma descrição da própria bailarina.

Salomé entra em cena. Passa ao meu lado com seu véu branco virginal e presenteia-nos com a energia de quem cala o público sem nada fazer. Anda ao lado das mesas em direção ao palco e sua força feminina silencia a todos. Silêncio e expectativa.

No palco um espelho e quase nada mais; não é necessário. A força desta cena, Salomé no palco em frente a sua própria imagem, marca a tópica deste espetáculo.

Uma única bailarina e tinha de ser. Salomé já foi pintada e escrita de tantas formas que o personagem histórico se mistura ao mito. Afinal quem foi esta mulher? Uma figura feminina que surgiu da fatídica e suposta escolha pela decapitação de um homem santo, João Batista. Politicamente, o fato de ter sua cabeça servida numa bandeja para satisfazer o desejo de Salomé apaga quase que totalmente o impacto da notícia de um homem santo morto. Mas isso é outra história, voltemos à dança.

Esta mulher, está em frente ao espelho que possui uma rachadura ornada de pedras, dividindo a imagem feminina em duas, mas na dança Salomé se multiplica em muitas faces.

Salomé entra menina e sobe para sua apresentação. Aos poucos se transforma numa figura sedutora. O conflito é claro no sorriso amargo que escapa por vezes do rosto da bailarina, ao se deparar com sua identidade refletida. O prazer da dança perde espaço para um sofrimento embutido em sua própria ação de dançar.

Fiquei pensando sobre este lugar que a mulher ocupa para ter um espaço na vida social. Tem de ser desejada, bela, quase que é obrigada e se obriga a ser um objeto de desejo do homem para que possa existir. Salomé de certa forma só existe no cenário histórico devido à sua relação com João Batista. Só existe por causa de um homem.

Achei bem conveniente a porta de entrada para o camarim ser bem ao lado do espelho. À mim pareceu que para se trocar, transformar-se, adentrava em sua imagem para sair outra mulher.

Despe-se de sua meninice e veste-se de negro, ganhando todo o peso da música flamenca, pés fortes no chão, rosto e olhar duro como quem muda o destino do mundo. As asas negras  carregam a morte em sua transparência. É outra mulher que dança, pois a Salomé menina morreu junto com sua mudança. 

Quem vejo nesta imagem? Sinto esta pergunta sussurrada várias vezes em seus movimentos.

Salomé sobe ao palco para dançar usando trajes vermelhos com um véu cor de sangue. Enquanto dança  se envolve nesta amargura escarlate que ironicamente mescla a leveza e a dor. Senti mesmo a angústia de quem dança sob o sangue derramado.

Os músicos estiveram presentes em muitos momentos compondo de forma singular estas cenas. Dois homens com muita sensibilidade encheram os espaços com belos sons. Espaços esses que se confundiam com a música e a bailarina. Salomé engolia em sua dança o som, o espaço e o tempo.

O final teve um detalhe que não me passou desapercebido. Acho que todo esta dramaturgia composta pela bailarina foi rica em detalhes, rica em nuances.

Salomé pendura o véu vermelho no espelho, segura com as duas mãos a moldura e por alguns instantes respira profundamente. Vira-se e para meu espanto, está livre de tudo... Uma mulher livre, forte, sofrida. Simplesmente vai embora pelo mesmo caminho que entrou. Esse momento foi de uma sensibilidade tal que senti meu coração parar um pouco.

Mesmo com os figurinos maravilhosos, penso que a produção deste espetáculo é muito modesta, se comparada com a qualidade da proposta que a bailarina apresenta. Pode voar muito mais alto do que isso. Mas de certa forma isso manteve o caráter intimista que foi valioso para captar os sentimentos trabalhados. Um ponto negativo foi a iluminação do Palco do Soleá. A luz apenas muda tons de cores, enquanto certos recursos de luz valorizariam sobremaneira o trabalho das imagens compostas na dança. Um canhão de luz ajustado manualmente pelo operador foi uma ótima tentativa de romper com o padrão básico de luz.

Quero agradecer a Regina Perocini pelos momentos que proporcionou. Foram momentos densos e até um pouco tristes. Mas o belo resiste à tristeza e nela também acha morada. Sua dança é fascinante.


Fabio Teixeira


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

O Julgamento de Frinéia

A fábula do planeta Mônada