Antes que a morte chegue: Viva!
Foto: Augusto Bell |
Um pequeno comentário sobre a
peça Antes que a morte chegue: Viva! Com Dramaturgia e direção: Cynthia
Paulino, na 23a mostra de trabalho da Escola de Teatro Puc-Minas.
Escrever sobre algo me pareceu desta vez uma experiência
limitada sobre alguns aspectos. A própria percepção da coisa em si é diminuída
pela consciência que percebe particularidades do objeto. Uma percepção
totalitária torna-se impossível porque a consciência é quase sempre focal.
Vários focos, aglomerados na memória formam o mosaico do que acreditamos
compreender.
Mas vamos ao trabalho. A primeira
coisa que me veio à mente ao entrar no teatro foi esta frase psicanalítica de
Lacan: “A psicose é o inconsciente a céu aberto”. Acho que pensei isso porque
as luzes estavam acesas e nada era ocultado neste espetáculo. Personagens,
cenário e publico todos iluminados, à mostra, expostos. Dispostos em duas
paralelas era possível aos expectadores verem o público que estava do outro
lado. Senti-me parte da cena.
O teatro se tornou um reino de
fantasia, com diversos personagens de contos, quase que figuras arquetípicas
proliferando imagens e informações fortes e esparsas pelo cenário. Vampiro,
Corcunda, Lobo Mal, Dr. Jekyll, branca de neve e anões,dentre outros.
A frase continuamente repetida,
referindo-se ao conto de Neil Gaiman “se os lobos saírem de dentro da parede
está tudo acabado”, me deu arrepios, quando percebi que estávamos ali, sentados
em nossas confortáveis cadeiras paralelas e não havia paredes, os lobos já
estavam ao nosso lado, expostos à luz da consciência.
Os contos têm essa propriedade.
Trazer à tona, trazer à luz. E mesmo assim só vemos um pouquinho, porque se os
nossos lobos estivessem bem à frente dos olhos, para escapar da horrenda visão
de nós mesmos, tenho certeza, ficaríamos imediatamente cegos, surdos, sem
olfato e tato, sem paladar. Afinal é insuportável à consciência ser consciente.
Eu penso que isso se perdeu um
pouco neste espetáculo. A força da imagem já estava ali e em si já dizia
demais. O sentido do conto, dos arquétipos, das figuras que enredam o
imaginário ocidental desde à infância, já trazia toda informação implícita. Os
atores tiveram este ponto de fragilidade. Realmente é muito difícil colocar na
voz e no sentido textual a grandiosidade de uma imagem, de tornar verossímil a
fantasia.
Achei excelente a cena do
discurso dos bebês. Rítmica,
angustiante, crescente, explosiva, tal e qual o discurso de Hitler. Um pai
sádico e frágil em sua relação paternal frente à perda. A força advinda da
fraqueza. Achei isso lindo.
Os atores que cantaram na peça me
emocionaram. Fiquei com essa pergunta na cabeça, o que há na musicalidade que torna
tão emocionante e verdadeiro o que sentem cantando, que não conseguem
reproduzir em suas palavras para além da música?
O trabalho
corporal dos atores foi muito bom. Por vezes me perdi do texto para observar
detalhes, da brincadeira com as pedras, do manuseio das bengalas, da cirurgia
nos bebês, na ansiedade intelectual, do bordado, das bonecas. Tiveram muito
cuidado com os detalhes, sutilezas ou força das ações.
Um espetáculo
com muitas coisas acontecendo ao mesmo tempo. Deve-se escolher o que quer ver
numa peça como esta. Como na consciência focal, podemos perceber partes, mas
não o todo. Como nos contos, como no jogo inconsciente x consciente. Essa foi
uma das belezas que ficaram marcadas na minha experiência com esse espetáculo,
de ter a cena aberta, às claras e simplesmente ser impossível perceber tudo o
que está bem à frente dos olhos. Como com os lobos nas paredes.
Cada vez mais acho a percepção
limitada pelo que se escolhe ver.
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