Os Olhos da Sombra.
Arte: Fernanda Hallais |
Os Olhos da Sombra
(Fabio Teixeira)
Feche os olhos
com bastante força e perceberá que seus lábios se erguerão num sorriso
involuntário. Não estou feliz e me sentiria uma idiota deixando minha boca
deformar-se num gesto que há muito tempo esqueci. Estes músculos doem um pouco
quando se contraem incomodando as maçãs do rosto e, além disso, causam rugas.
Não preciso sorrir pra que isto aconteça, já que estão surgindo naturalmente
junto com o meu humor que, como dizem, é ácido. Acho que isso é uma ótima
ferramenta para afastar os ignóbeis sorridentes. Tenho outros motivos para
permanecer de olhos abertos.
Tudo começou
quando a sombra apareceu. Naquele dia desci do ônibus sobre o sol de meio dia,
saindo daquela escola chata e deixando para trás os moleques barulhentos. Não
fazia a menor questão de olhar para o caminho que meus pés já sabiam de cor,
então, olhei para baixo. A princípio, observando o asfalto, achei estranho
minha a sombra não corresponder exatamente ao formato do meu corpo. Parecia um
tanto maior, mais larga e com um tom de escuro diferente. Entretida com esta
descoberta não percebi minha chegada em casa e bati com a cabeça na porta.
Senti-me um pouco burra, não só pela falta de percepção, mas por continuar
procurando a sombra mesmo estando embaixo da soleira. Na verdade ela continuava
lá, não do mesmo jeito e nem com a mesma intensidade, já que havíamos
abandonado o sol, mas aquele tom escuro diferenciado permanecia sob meus pés.
Desde então, declarei esta sombra como minha companheira.
Andava pelas
ruas, sentava na calçada cabisbaixa e observadora. Não me sentia mais feliz por
isso, mas não me sentia tão sozinha. Quase que hipnotizada pela mancha negra no
cimento passava algumas horas do dia nesta posição, sem piscar. Quando estava
em casa, as lâmpadas fluorescentes faziam um barulhinho chato e projetavam uma
sombra mirrada, mas ali, o sol começava a ter alguma utilidade em minha vida,
já que devido à sua maior luminosidade minha sombra se tornava mais bonita,
mais escura.
À noite, ao
deitar na cama, fechei os olhos e foi a primeira vez que senti aquela sensação
horrível. Senti-me engolida, absorvida totalmente dentro da minha própria
sombra. Era como se cada pedaço de meu corpo esmaecesse na obscuridade, caindo
num esquecimento. Eu conheço bem a tristeza, a ponto de tornar banais os meus
psicotrópicos diários, mas essa sensação era diferente. Na tristeza eu sempre
achei minha forma de ser, quase como um reconhecimento da auto-imagem, vendo o
mundo através das pálpebras semicerradas. Existe uma certa lentidão na tristeza
que me conforta. Mas aquilo era a própria sensação da derrocada da alma indo
para um lugar onde nem mesmo a tristeza poderia me abrigar. Assustada, levantei
e ascendi a luz, olhando para meus pés. A sombra estava bem maior que de
costume. Uma pontada fria passou pelo estômago e nessa noite não pude dormir
assim como em nenhuma outra depois dessa, até o presente momento. Basta
arriscar fechar os olhos que sinto “a queda”.
Às vezes
cochilo de olhos abertos, sentada no sofá durante o dia. Isso diminui a
sensação de queda no abismo e dá pra descansar o mínimo, mas já estou sem
forças e sem saída. Se eu contar para alguém, principalmente para meu
psiquiatra, sem dúvidas posso ser diagnosticada como esquiso-não-sei-o-que-delirante,
estes nomes complicados que eles usam para categorizar o que não entendem. Pior
seria se me sedarem, o que me faria dormir e então a sombra tomaria conta
totalmente de mim, me engolindo até o ultimo pedaço. Ao mesmo tempo não posso
ficar sem dormir, ouvi dizer numa reportagem na tv que a abstinência de sono
pode levar à loucura.
Acho que
ninguém presta atenção no tamanho da própria sombra, quanto mais, na sombra dos
outros e a minha já está enorme. Aquelas cochiladinhas diurnas tão inocentes alimentaram
minha companheira. Há tempos não fazia mais sentido ir à aula, então quando eu
saio de casa em direção ao ônibus da escola dou meia volta em outra direção
para chamar menos atenção dos familiares. Vagueio um pouco pelas ruas, com as
nuvens chuvosas tapando o sol. Sento no balanço do parque espalhando a sombra
pela redondeza e analiso as minhas tentativas frustradas. Já havia colocado
fogo, iluminado com lanterna, entrado na piscina, cheguei a pendurar num galho
de árvore, ficar em pé num espelho e até rezei um dia, percebendo o quanto que
eu estava desesperada ao fazer isso. Não sabia pra quem rezar direito, rezar
pra São isso, São aquilo, Deus, Zeus, Alá. Não tenho amigas e minha família me
ignora. Uma vez por mês meu psiquiatra me escuta com cara de parede, imóvel. Um
dia quase dei um peteleco no olho dele pra saber se o olho dele não era de
vidro. Nunca contei pra ninguém sobre a sombra, claro, e já fazem dois meses
que não durmo. Se não estou do lado de fora da casa não sei se é dia ou noite, perdi
a noção do tempo. É estranho porque não paro de pensar um único segundo e não
sei bem sobre a seqüência do que pensava anteriormente. Entendi que o sono é
como que um organizador da mente, que faz com que os pensamentos, por uma
espécie de decantação metafísica se aglutinem no fundo do cérebro, ao invés de
ficarem boiando na imensa sopa de idéias que se tornou minha cabeça.
Começo a ter
medo dos sons, por menores que sejam, como um prato que cai, um pombo sendo
degolado, uma bicicleta que passa rápido ou uma carpa que pula alto no bueiro
cheio de água, sons assim que me fazem arrepiar. Entro para o meu quarto e acho
estranho estar à meia luz. Na verdade estava à meia sombra e ao procurar o chão
já não o vejo. Tudo de minha cintura para baixo está tomado pela escuridão.
Retiro os sapatos, apertando nos calcanhares de um pé com o outro e piso
descalça para ver o que acontece. Nada. O chão parece ser o mesmo de antes,
sinto o tapete e tropeço num pedacinho de plástico que julgo ser um prendedor
de cabelo.
Sinto-me
tonta, desorientada e sem forças pra pular pela janela e voar. Pelo vidro vejo
o sol me chamando enquanto escuto as batidas na porta do quarto e aqueles
gritos. – Filha! Filha! Abra a porta! – Tenho vergonha que vejam esta escuridão
em mim e fico estática. Não há mais o que fazer. A sombra chega agora à altura
dos meus ouvidos e escuto seu murmúrio: – Desista... – Desistir de que? Falei
em voz alta. Eu não estava insistindo em nada. Aquela palavra ecoou tantas
vezes que parei de escutar os gritos e as batidas. Sentindo uma confiança que
nunca havia sentido, tive a certeza de ter achado a salvação para minha vida.
Decidi firmemente que não fecharei meus olhos, nunca mais.
A ultima vez
que senti meu corpo, lembro de estar sentada na cama olhando para a porta sendo
arrombada. Não sei porque tive tanto medo, por tanto tempo, de ser o que sou.
Não sinto mais dor nem a tristeza que me incomodava. Não escuto as mentiras que
me falam e nem respondo. Desde muito nova gostava de ficar observando as pessoas
sem ser notada, escondida pelos cantos da casa, do colégio, das praças. Dentro
da minha sombra agora sou invisível a mim mesmo e não sinto mais os olhos
acusadores, a falsidade de meus colegas e professores ao me tratar como normal.
Muito menos o olhar de pedra dos médicos. Eu os vejo me olhando, mas sei que
não podem atravessar esta escuridão que me encontro e nem me tocar. Sou apenas
meus olhos na escuridão. Estranhamente nesse momento, sinto um sorriso idiota
em meus lábios.
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