A Menina Que Não Queria Sonhar.

Ilustração: Luiza Uira




A menina que não queria sonhar.


 
Naquele dia levantou-se rápido, dando um pulo da cama.

-         Não me conformo! – gritou secamente.
-         O que foi minha filha?
-         Não quero mais sonhar.

Colocou as mãos na cabeça e sacudiu negativamente enquanto sua mãe permanecia estática na porta do quarto. Aos seus olhos sua mãe lembrava um algoz parado na porta do cárcere chamando o prisioneiro para a execução.

-         Esta noite foi a última vez que deixo isso acontecer comigo.
-         O que minha filha? Do que você está falando?
-         Esta foi a última vez que sonhei. Não quero mais, não vou mais. Recuso-me a sonhar novamente.
-         Não estou entendendo.
-         Ih mãe, me deixa!
-         Está atrasada pra escola.
-         Novidade...

Vestiu o uniforme, prendendo os longos cabelos negros com uma fita elástica, mal calçou as sapatilhas gastas e saiu correndo.

-         Não vai tomar seu café?

Para ela nunca foi fácil acordar. Sempre tinha aquela sonolência matutina, aquele peso no corpo e a fadiga de quem não dorme bem há muito tempo.
Batia o sino da escola quando chegou ao portão. Suada, passou rápido pelos corredores para não ser notada. Entrou na sala e sentou-se em sua carteira usual na qual já estava depositada a folha da prova virada com a face para baixo. Em dias de prova todos notam a chegada dos atrasados.
Pensativa, não entendia o motivo daquele sonho contínuo. Fitou discretamente a amiga do outro lado da sala que estava de olhos vidrados no menino novato. Ele sentava-se um pouco à frente, tinha as costas largas e cabelos raspados por máquina. Por um tempo prendeu a respiração e ficou observando a nuca branca e peluda. Às vezes ela esquecia de respirar e se pegava fechando os olhos tontos pela apnéia. Irritada com a amiga suspirou enfadada.

-         Você viu como ele está bonito hoje?
-         Vi que você não tirou os olhos dele.
-         Está com ciúmes?
-         Ele nem conversa com a gente, aliás, nos ignora. É frustrante não ser ninguém - pensou alto.
-         Ahn?

Tocou o sino da escola.

-         Já voltou filha?

Fechou a porta do quarto e deitou-se.

-         Vem jantar, filha!

Colocou o travesseiro na cabeça. O silêncio era precioso pra ela. Desejava que tudo fosse silencioso, que não existissem pensamentos ocupando espaços por toda parte.
Entrou no chuveiro e deixou a água encher os ouvidos, tapando com as mãos e entupindo os tímpanos. Ela adorava fazer isso, abafar o som, calar o mundo, escutar apenas o nada do seu próprio corpo. Agachada, deixou a água bater na cabeça ressonando surdamente. Não havia lágrimas, apenas água escorrendo pelo rosto. Mal enxuta, sentou-se no tapete de frente para o relógio que trazia rapidamente a hora temida.
Quando algo muito ruim acontece, sentimos dor, angústia e medo. Depois de muito tempo a dor deixa de existir, assim como a angústia. Mas o medo fica, o medo de acontecer novamente. Às vezes nem mesmo a lembrança do fato ruim existe, mas, o sentimento de medo permanece e é real.
Não foi bem esse o caso da menina, foi um pouco mais complexo. Grande parte de sua vida foi cercada de dor. Abusada na escuridão, parou de chorar. Aprendeu a calar-se com a própria mãe parada na porta do quarto, enquanto era consumida. Tinha essa imagem na cabeça, da mãe parada, calada olhando tudo com olhos duros. Então se esforçava para esquecer e dormir, dormir e esquecer. Desde então ela começou com aquele sonho. No início parecia normal como um sonho qualquer. Trocava em sua mente o corpo suado e peludo pelo sonho. Aquele estado onírico tinha um efeito anestésico, alucinógeno, não sabia se dormia ou delirava.
Quando ele morreu, ao contrário do que deveria, tudo ficou mais complicado em sua cabeça. Não tinha mais abuso, nem consumo. A razão da dor e da angústia tinha partido. Mas o medo permaneceu, assim como o sonho. Dia após dia, sonhava as mesmas coisas, nas mesmas seqüências, com os mesmos cheiros, cores, texturas e sabores, com as mesmas palavras.
O sonho se tornou uma maldição. Ela estava amaldiçoada para sempre a acordar.
Abrir os olhos tornou-se seu suplício, quando a realidade tediosa e fria, um mundo quase incolor a despertava. Uma realidade crua e densa, enquanto seu sonho era a mais perfeita e triste mentira que alguém poderia imaginar.

-         Seu mingau está pronto, filha.

Abriu a janela e sentou-se na beirada, com as costas viradas para o lado de fora.
Ficou esperando o sono chegar.


(Um conto de Fabio Teixeira)

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